Vivemos tempos sem precedentes e é normal e natural estarmos com várias dificuldades, face às tantas mudanças e necessidade de adaptação. Nesta fase atual, em que o imposto distanciamento social é necessário e parte da responsabilidade comum, é urgente pensarmos como podemos manter a interação, tão fundamental para a condição humana.
[Hoje, a reflexão é pessoal, relativa e subjetiva. É apenas a minha, com tudo o que me envolve – a relação comigo própria, com os “meus”, amigos e família, com os colegas, com a minha profissão ou condição privilegiada.]
A importância do toque e a sua função terapêutica
O toque é o colo de todos os sentidos. É uma necessidade primordial. É, pelo toque, que nos diferenciamos do Outro, pela individualidade e unicidade que nos caracteriza delimitando, de certa forma, um espaço único e singular da (nossa) perceção. É, através da pele, no contacto com o Outro, que se apre(e)nde o afeto. O bebé apercebe-se do seu corpo através do toque e da relação – entre si e o cuidador. Por exemplo, a amamentação é mais do que a função alimentar ou fisiológica - é também contato, calor-amor materno, é o início da comunicação. Por esta relação molda-se, por um lado, a necessidade e o desejo de domínio comum a todos os indivíduos, a necessidade de controlo e a manipulação do objeto de afeto (i.e. pessoa, contexto) e, por outro, a autonomia, a independência e a segurança em si próprio.
A privação do toque e as suas consequências
A importância do contato e dos laços afetivos e emocionais, nomeadamente pela relação mãe-bebé, no desenvolvimento do ser humano foi clinicamente estudado e teorizado por vários autores (ex. Winicott, Piaget, Carls Rogers, Freud, Melanie Klein). Spitz (1983) e Montagu (1988) demonstraram, igualmente, que o toque é responsável pela adaptação do ser humano ao ambiente que o rodeia, pelo desenvolvimento psíquico, motor, cognitivo e afetivo, assim como pelo desenvolvimento da linguagem, socialização e de comportamentos saudáveis.
Spitz, na sua investigação clínica com crianças que permaneceram longos períodos em hospitais ou em orfanatos, privadas da presença materna (ou do cuidador afetivo), durante o primeiro ano de vida, demonstrou que as mesmas apresentavam perturbações somáticas e psíquicas como resultado da ausência da mãe, mesmo garantidos os cuidados de higiene e de alimentação. Os cuidados administrados eram “anónimos” e sem laços afetivos.
A este tipo de perturbação, experienciadas pelos bebés institucionalizados e privados de cuidado afetivo, Spitz denominou de Hospitalismo, caracterizando-o por perturbações emocionais, comportamentais e de desenvolvimento (p.e. atraso no desenvolvimento corporal, na adaptação ao meio ambiente, atraso na linguagem, recusa alimentar, perturbações do sono, baixa imunidade ou comportamento ansiogênico). Igualmente, verificou que as crianças teriam mais tendência a ficarem doentes e, em casos muito graves, apáticas.
Conclusões semelhantes foram sugeridas em outros estudos, em 1989, com crianças encontradas nos orfanatos romenos sobrelotados. A maioria das crianças com 2 e 3 anos de idade não falavam nem andavam e não demonstravam qualquer expressão emocional - a privação do contato físico e a falta do toque influenciaram o estado de saúde física e mental. Recentemente, em 2016, um estudo evidenciou exatamente os efeitos transformadores do toque, na saúde e no desenvolvimento infantil, pelo aumento da imunidade, dos padrões de sono e do desenvolvimento físico e cognitivo.
A investigação clínica já demonstrou que:
O toque é necessário para o nosso bem-estar, físico, psíquico e emocional, potenciando alterações fisiológicas mensuráveis tanto em quem toca como em quem é tocado;
A pressão sanguínea e o batimento cardíaco diminuem, assim como há uma redução das hormonas associadas ao stress (ex. cortisol, noradrenalina) e um aumento da concentração de células natural killers (NK), que promovem a função imunitária;
O toque diminui a resposta de “luta ou fuga” e aumenta a ocitocina, a “hormona do amor”, que se traduz em segurança e confiança;
A ocitocina é produzida no hipotálamo, e está associada ao afeto, à indução de sentimentos positivos e aos laços primordiais mãe-bebé;
Estudos recentes sugerem que a ocitocina intensifica também memórias relativas a uma situação/contexto social percecionado como negativo ou stressante. Desta forma, sugere-se que esta hormona terá uma dupla função, tanto em desencadear como em reduzir a ansiedade;
O toque também ajuda na libertação de neurotransmissores, resultando num aumento de serotonina e de dopamina, reduzindo a concentração de substância P - o que pode ajudar a aliviar a dor e depressão;
Alguma literatura refere que a tensão corporal, a insónia, a compulsão alimentar, a solidão ou o medo podem ser minimizados e contidos pelo toque entre pessoas.
Cada caso é um caso. Como é o teu?
O toque é um ansiolítico e antidepressivo natural que nos permite abraçar a dor, procurando mais saúde. Abraçar dá-nos saúde. Mais do que agradável é fundamental para mais vida, alegria e conforto.
Hoje, mais carentes e privados do toque pelas regras e normas para manter a distância social (leia-se física), podemos estar com “necessidade de ajuste”, para repor o “colo” que nos tiraram. Tanto pela literatura como pela experiência clínica e subjetiva, o toque facilita a partilha e identificação de emoções, sendo base para o desenvolvimento e maturação das relações afetivas.
Enquanto humanos, não podemos negar a importância das relações sociais, do encontro e do contato com os outros. O toque é uma forma, tantas vezes única, de comunicarmos como alguém é importante para nós.
Como lidar com o distanciamento social? E com a privação do toque?
As seis dicas abaixo podem ser uma alternativa para que, mesmo com a distância física que nos separa, não se perca a interação social. Mesmo que não sejam ideais, são práticas para promover mais saúde mental:
1) Passar tempo na Natureza (nunca é demais!)
2) Adotar um animal de estimação (de forma consciente e responsável)
3) Quarentena “Crew”/Bolha
Se te sentes à vontade para interagir e, se não estás doente, organiza-te, de forma consciente e responsável, com um pequeno grupo de 3 a 4 pessoas para passar o tempo. Esta possibilidade cria um espaço seguro e confortável para uma interação social segura e contentora.
4) Experimentar técnicas de visualização
Trabalha o teu “espaço seguro” e/ou concentra-te em experiências imaginárias agradáveis. As técnicas de visualização podem ajudar a promover mais bem-estar e tranquilidade. Podes também recordar fotografias antigas ou lembranças felizes.
3) Utilizar um cobertor ou roupa confortável
Pode parecer estranha a sugestão, mas, quando a questão é o toque, nada como nos sentirmos acolhidos. Não é tão bom como o real, porém a sensação de um cobertor ou de uma camisola confortável pode ajudar a simular a sensação e contenção do toque físico.
4) Fazer uma (auto)massagem
Se tiveres um parceiro, pode ser mais divertido e estimulante. Mas, mesmo apenas na tua companhia, explora o teu corpo e oferece-te uma automassagem. Cria um momento especial, escolhe um creme ou um óleo que gostes e abraça esse momento contigo.
5) Movimentar o corpo (mente-alma)
Movimentar o corpo é uma atividade fundamental para melhorar o teu humor. Seja em exercício ou atividade física, alongamentos, dar um passeio ao quarteirão ou uma caminhada. Aprende um novo género de dança. Se não queres sair de casa, continuas a ter várias alternativas online.
6) Intencionalidade e gentileza
Nas interações sociais com os outros, coloca como intenção dar e receber, diariamente, afeto. Se vives acompanhado, e se é possível o contato físico, abraça um pouco mais o teu parceiro, o teu filho ou a tua mãe. Trabalha a tua presença, com genuíno interesse pelo outro. Se estas só, podes deliberadamente ligar para um amigo ou familiar. Podes acenar para o vizinho, que reconheces, ou fazer contato visual para iniciar uma interação, os olhos também sorriem e podem gerar um “olá” ou um “bom dia” amigável!
O desafio de abraçar esta diferente realidade
O abraço é um movimento de (pro)cura. Como um círculo de cooperação, afeto e alento. O abraço preenche vazios. Quando abraçamos alguém, quando tocamos em alguém, tornamo-nos presentes. É um momento de afirmação e de validação do que sentimos. Abraçar é cuidar, como um reencontro num lugar seguro, de amor incondicional. É uma forma de apoio, de crescimento e de maturação. Se não podes abraçar alguém agora, abraça-te a ti próprio. Os benefícios serão evidentes.
É importante estarmos atentos/as aos sinais do nosso corpo e como, de uma forma ou de outra, esta experiência coletiva impacta, apesar de ser única na nossa vivência pessoal. Procurar ajuda especializada na área da psicologia e da saúde mental é uma ajuda para mais equilibro e bem-estar. No trabalho terapêutico, um dos objetivos é o ampliar da consciência e da capacidade da própria pessoa de se autorregular, reconhecer e resgatar as suas forças e habilidades, reaprendendo a confiar no seu organismo que, por si só, também se manifesta e regula, com o objetivo de uma vida mais saudável e de acordo com o que a pessoa realmente precisa. As necessidades podem ser variadas e, muitas vezes, as mais óbvias são as negligenciadas ou inconscientes devido à dor, ao cansaço e ao desgaste emocional associado.
O (nosso) corpo não esquece e comunica. Estás (-te) a escutar?
Carolina Oliveira Borges
Referências Bibliográficas:
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Freud, S. (1969). O Mal Estar na Civilização. Brasil. Imago.
Seligman, M. (2008). Authentic Happiness – Using the New Positive Psychology to Realize Your Potencial for Lasting Fulfillment. New York: Fress Press. ( Obra original publicada 2004)
Spitz, R. A. (1983). O primeiro ano de vida: um estudo psicanalitico do desenvolvimento normal e anomalo das relações objectais. 3 ed. São Paulo
NAVARRO, F. Somatopsicopatologia. São Paulo: Summus, 1996 REICH, W. Análise do Caráter. São Paulo: Martins Fontes, 1995
Montagu, A. (1986) Touching. The human signifcance of the skin (3rd ed.). New York, NY: Harper & Row, Publishers, Inc.
App, B., Mcintosh, D. N., Reed, C. L., & Hertenstein, M. J. (2011) Nonverbal channel use in communication of emotion : how may depend on Why. Emotion, 11(3), 603–617. doi:10.1037/a0023164
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